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Mulheres de Piquiá são as mais afetadas pelos impactos das siderúrgicas, afirma pesquisadora Michely

notícia Aos 22 anos, Michely Alves é pesquisadora e bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), de Imperatriz. Engajada em pesquisas acadêmicas, Michely estuda questões voltadas à comunicação, memória, gênero, feminismos, raça e cidadania. Atualmente, participa do Grupo de Pesquisa Jornalismo, Mídia e Memória (Joimp) e do Núcleo Interdisciplinar Maria Firmina dos Reis.

Seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado em julho deste ano, tem como título “Até o último dia das nossas vidas: análise das estratégias comunicacionais pelas mulheres de luta em Piquiá-MA”, e aborda a trajetória de luta e resistência dos moradores dessa região, além de enfatizar a importância do protagonismo feminino nesse processo.

A comunidade de Piquiá de Baixo, localizada no munícipio de Açailândia (MA), sofre a mais de 30 anos com os impactos gerados pelas indústrias siderúrgicas e pela infraestrutura de transporte de minério de ferro e estão mobilizados em um processo de reassentamento para um novo bairro. A pesquisadora analisou as narrativas de três mulheres que buscam a garantia dos direitos da comunidade em que vivem, em especial o direito de viver com dignidade, livre da poluição causada pelas indústrias siderúrgicas.

Nesta entrevista, Michely fala sobre os impactos das siderúrgicas na vida dos habitantes de Piquiá, a dificuldade que eles enfrentam para garantir os seus direitos, e como as mulheres estão à frente dessa luta. Além disso, ela aborda a importância de desconstruir a estrutura patriarcal e de estender o conceito de feminismo para outras camadas sociais.

Como foi feita a seleção das mulheres para realizar a sua pesquisa?

Michelly Alves: Quando comecei a pesquisar sobre as lutas e resistências da comunidade de Piquiá-MA no ano de 2019, observei que as mulheres da comunidade tinham e continuam tendo bastante comprometimento com os movimentos sociais, todas elas, até mesmo mulheres que não são fontes de notícias das mídias que, diariamente, as procuram para falar dos impactos no bairro. A partir disso, comecei, junto com a profa. Roseane, a fazer visitas na comunidade. A cada visita tínhamos rodas de conversas com as mulheres de lá... e foi nessas rodas de conversas que percebi que a luta é coletiva. Não é uma luta apenas de jovens mulheres, mas de todas e todos que enfrentam aquela situação.

Por isso, a ideia inicial e que acabou sendo uma boa construção metodológica para o trabalho foi separar os grupos, ou seja, colocar três mulheres da região com histórias de vidas e idades distintas para que, assim, a pesquisa ficasse sob uma ótica de três gerações que partilham do mesmo impacto.

Dona Tida, por exemplo, com seus 77 anos aprende muito com a luta de Antônia Flávia, 27 anos, e, com a luta de Joselma Alves, 45 anos. E o mesmo acontece ao contrário. Percebi que a luta das mulheres de Piquiá transcende a idade, todas estão seguindo o mesmo rumo: a luta por dignidade e moradia justa.

Logo, a escolha da seleção de mulheres para realizar a pesquisar foi colocar propositalmente, idades e experiências diferentes para que quem for, futuramente, fazer uma leitura do trabalho compreender a missão feminina voltada para suas comunidades.

Como foi o processo de resgate da memória da comunidade de Piquiá?

Michelly Alves: Bom, quando entrei no Grupo de Pesquisa Jornalismo, Mídia e Memória (Joimp) em 2018, nós (integrantes do grupo daquele período) estávamos estudando, incessantemente, textos que tinham como viés a comunicação e a memória em nossos seminários internos. Acho que quando um estudante de comunicação, meu caso, por exemplo, começa a ter diálogos e reflexões sobre a construção da memória fica bem mais didático entender um contexto de luta como a da comunidade de Piquiá.

A partir disso, a professora Rose me convidou para integrar o Grupo de Extensão “Cartografia Social de Piquiá de Baixo, Açailândia: memória, trajetórias e ativismos digitais”, com professores e alunos de outras universidades, como UEMASUL [Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão] e UFNT [Universidade Federal do Norte do Tocantins], que são de cursos diferentes, mas que experimentam a mesma linha de estudo: memória.

A memória da comunidade existe, isso é fato. O que, nós, alunos e professores, estamos trabalhando nesses contextos é justamente viabilizar as histórias de vida dessas pessoas nas pesquisas científicas. Acredito que não estamos necessariamente “resgatando” a memória da comunidade, mas nos permitindo escutar e compreender a situação de vulnerabilidade que envolve as famílias de Piquiá. Então, denominaria como um processo de escuta sobre estas memórias, o que foi bastante intenso, um trabalho de fôlego.

A construção do TCC também não foi diferente, falar sobre as experiências destas mulheres dialogando com a memória delas foi algo muito impactante para mim.

Que estratégias comunicacionais as mulheres de Piquiá utilizam para mudar a realidade da sua comunidade? 

Michelly Alves: Elas se organizam em grupo, junto as entidades não governamentais que trabalham para atender e denunciar os impactos socioambientais de regiões como Piquiá e comunidades ao longo do Corredor Carajás. Elas se organizam nos eixos: social e político. Explicando brevemente, elas criaram eixos de lutas dentro da comunidade, como por exemplo, o eixo social que tem intercâmbio entre comunidades; grupos liderados por mulheres, como o “mulheres artesãs” ou “da horta para cozinha”; assembleias que visam informar o processo de reassentamento da comunidade. O eixo político já é direcionado as lutas fora da comunidade, ou seja: participação em fóruns, eventos, conferências; viagens nacionais e internacionais para discutir novas possibilidades de enfrentamento etc. Tudo isso para conscientizar a própria comunidade sobre a importância da luta e da preservação dos seus direitos socioambientais.

Quais são as dificuldades que essas mulheres enfrentaram e enfrentam durante a luta por direitos e sobrevivência?

Michelly Alves: São inúmeras dificuldades enfrentadas por elas, apenas por serem mulheres. Elas são silenciadas constantemente pelos representantes das empresas, é bastante complicado esses enfrentamentos. Precisamos entender que o patriarcado e o capitalismo andam lado a lado, oprimindo as pessoas, principalmente, as mulheres e que essas opressões podem vir de todas as formas.

Joselma, por exemplo, revelou na sua entrevista que já foi humilhada, xingada e desacreditada por homens que não aceitam as mulheres em ambientes que discute diretamente sobre o meio ambiente.

Dona Tida também informou que todos os dias são dias difíceis quando se é mulher e que para combater o que ela considera injusto é preciso ter discernimento nas lutas.

Antônia Flávia disse que enfrentam suas lutas sentindo, literalmente, impactos nos seus próprios corpos.

Além de sofrerem violências físicas, porque destruição ambiental afeta fisicamente os corpos femininos, elas sofrerem violências simbólicas do sistema.

Qual relato mais te marcou na construção do seu trabalho?

Michelly Alves: Todos os relatos me marcaram muito. Todas as mulheres (Dona Tida, Joselma e Antônia Flávia) me ensinaram muito. Não tem como descrever a intensidade de cada fala, cada sentimento que elas passavam no momento da entrevista. Posso dizer que alguns temas citados por cada uma tiveram impactos diferentes em mim, então todos os relatos delas me motivaram a continuar pesquisando, aprendendo sobre os movimentos feministas e refletindo sobre esse contexto que necessita de mais visibilidade

Por que as mulheres são as mais afetadas pelos impactos das siderúrgicas?

Michelly Alves: Existe um termo dentro dos feminismos que é explicado no TCC que se chama corpo-território. Esse termo diz muito sobre os impactos sofridos pelas mulheres em comunidades atravessadas por megaprojetos. Basicamente, o significado de corpo-território é que mulheres que vivem nesses ambientes são impactadas, literalmente, em seus corpos. Elas sentem dores, literalmente. Dores físicas e dores psicológicas. As mulheres são as mais afetadas porque elas veem seus direitos negados, suas vidas atravessadas e suas famílias marginalizadas.

Por que essas mulheres representam um símbolo de resistência para você?

Michelly Alves: Tida, Joselma e Antônia Flávia são símbolos de resistência porque estão à frente das suas comunidades. Lutam por dignidade e respeito sem precisar ofender ninguém e passar por cima de ninguém.

Elas utilizam o diálogo e a construção de saberes para representar a comunidade em que vivem e isso já é grandioso o suficiente para serem símbolos de resistências. Imagina ter força para representar uma comunidade mesmo com tantas expropriações, é algo para se admirar.

Você se inspira em alguma delas?

Michelly Alves: Em todas elas. Flavinha, por exemplo, é uma força de mulher que fico encantada. Conheci ela pessoalmente e sei que ela é muito além do que se vê nas entrevistas que já li sobre ela na internet. Flavinha é uma jovem mãe, mulher preta e ativista incrível. Dona Tida também é maravilhosa, sempre com um sorriso no rosto e com muita fé, fé na vida e na esperança de se viver bem. Joselma Alves é genial, assim, ela enxerga um futuro melhor a partir da educação de qualidade acessível a todos.

Todas elas me inspiram de alguma forma, até mesmo outras mulheres da comunidade que tive o privilégio de conhecer e entrevistar, mas que não entraram para o recorte da pesquisa.

Como você enxerga a relação de poder existente entre as indústrias siderúrgicas e a comunidade de Piquiá?

Michelly Alves: Complicada. Os megaprojetos sabem que fazem mais mal do que bem, isso é incontestável. Então, quando vejo até mesmo em textos teóricos essa herança colonial que são os megaempreendimentos que extraem recursos naturais e devastam o meio ambiente fico pensando nos inúmeros projetos de pesquisa que poderiam ser elaborados para que tanto o meio acadêmico, quanto a população em geral pudessem conhecer e discutir sobre o assunto e criar possibilidades.

No seu trabalho, você aborda que inicialmente o movimento feminista era direcionado apenas para mulheres brancas e de classe alta. Como a comunicação expandiu o feminismo para as mulheres negras e de outras camadas?

Michelly Alves: Existem várias correntes feministas, a gente tem que deixar isso bem claro. Quando o feminismo é pautado já vem aquele leque de estereótipos que já estamos cansadas de ouvir: “feministas não se depilam”; “feministas odeiam os homens”; “feministas isso e aquilo”. Quando abordo no trabalho que inicialmente o movimento feminista era direcionado para mulheres brancas e de alta classe é porque era um movimento de exclusão, exclusão de mulheres negras, mulheres trans, mulheres latino-americanas.

No livro “A Mística Feminina”, da Betty Friedan, por exemplo, são 500 páginas para dizer que mulheres brancas, casadas e de classe média estavam adoecendo por ficarem dentro de casa.  Longe de mim dizer que isso não é problemático, é sim. Agora imaginem só a vida de mulheres negras, indígenas e latino-americanas que nunca deixaram de trabalhar e que continuam nessa busca por sobrevivência infinita. Esse é o ponto.

Quando Bell Hooks (escritora afro-norte-americana) e Lélia Gonzalez (escritora afro-latino-americana) começaram a trazer mais figuras de mulheres pretas para o ambiente acadêmico foi uma revolução, até hoje muitos pesquisadores não as consideram como pesquisadoras teóricas e isso é fruto do racismo efetuado por mulheres brancas que não as inseriram nas primeiras ondas feministas.

Os feminismos, ou seja, diversos movimentos feministas que vão além da branquitude, revelou diferentes meios de comunicação para viabilizar mulheres negras, indígenas e latinas. Ser feminista é muito além da autodeclaração, é um processo de reflexão sobre as diretrizes em que estamos inseridas

Em Piquiá não é diferente, muitas mulheres de lá nem sabem o que é feminismo. Mas é perceptível que as ações delas são politicamente voltadas aos movimentos feministas, porque elas refletem e se questionam sobre o cenário em que vivem.

Muitas pessoas ainda possuem uma visão deturpada sobre o que é feminismo. Você acha que isso se deve ao quê?

Michelly Alves: Como disse anteriormente, as pessoas estão presas em amarras que, propositalmente, foram construídas para que o feminismo fosse ridicularizado. Ser feminista não é a mulher que não casa, que odeia homem ou que não quer ter filhos... ser feminista é entender seu cenário de vida, refletir, se posicionar e ter o direito de escolher seus caminhos. Ser feminista é ser livre e deixar outras mulheres livres. Já disse Audre Lorde, mulher negra que tem grande influência nos estudos feministas: “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não for, mesmo quando as correntes dela forem diferentes das minhas”.

Eu não preciso convencer ninguém a ser feminista ou gostar do feminismo, porque o feminismo não é imposição. E mesmo que para algumas pessoas possa vir a parecer uma ditadura de mulheres, só posso lamentar. Apenas

No decorrer da História, as Igrejas sempre foram sinônimo de influência e poder. Em Piquiá, as mulheres contam com o apoio dessas instituições, que dão maior visibilidade a essa luta por direitos. Como foi construída essa relação?

Michelly Alves: A relação das igrejas com vertentes diferentes (católica e protestante) junto aos moradores de Piquiá é bonita de se ver, mas de acordo com alguns moradores nem sempre foi assim. Não teve conflito, para deixar claro. Mas no início da luta, em meados dos anos de 1990 e 2000, a igreja protestante desacreditava na luta da comunidade por entenderem que eram pessoas normais enfrentando megaprojetos gigantes.

Foi através do diálogo que as igrejas começaram a entender que os moradores e moradoras da comunidade de Piquiá tinham força e precisavam de apoio para lutar por seus direitos. Mais uma vez a prática do diálogo nos ensinando que essa é a melhor alternativa que possamos imaginar.

O ambiente político ainda hoje é dominado por homens e as mulheres são invisibilizadas. Na sua concepção, quais são os caminhos para essa mudança?

Michelly Alves: O melhor caminho é nos desprender de visões deturpadas sobre a figura feminina. Mulheres são tão fortes quantos os homens. Dialogar sobre as nossas problemáticas e ter apoio dos homens para isso é o essencial. Bell Hooks disse no livro “O feminismo é para todo mundo” que os homens são importantes nas lutas de gênero, mesmo que sejam eles que causam certos conflitos.

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Autore(s): LÍVIA CARVALHO.